quarta-feira, 14 de julho de 2010

Resiliência


Sentou-se na mesa de sempre. E pediu uma água com gás e rodelas de limão. O cabelo apanhado, bem disciplinado. O rosto levemente maquilhado, blush, rímel e um bâton muito suave. O colar de pérolas da avó doida, que vivia sozinha na casa grande. E o anel que o pai lhe tinha deixado. Vestia uma saia muito curta em pied de poule e uma blusa de seda do armário da mãe. Os gestos eram muito polidos. O sentar sem cruzar as pernas, entendido como sinal de vulgaridade. As costas direitas, os cotovelos afastados da mesa. E o rosto impassível. O rosto nunca devia mostrar emoções extremas. Nem mesmo a tristeza incontrolável. Ou a exaltação. Isso nunca seria próprio de uma senhora.
Olhou para o relógio. E depois para a porta de entrada do restaurante. Tirou um caderno vermelho da mala e começou a escrever. Mas desconcentrada. Levemente agitada. E o olhar foi mais uma vez para a porta. E depois para o relógio. Começava a impaciência da espera.
A água com gás já tinha acabado. Primeiro pensou em pedir outra. Mas isso daria um pretexto para justificar a espera. E ela queria esperar sem pretextos. Para sentir por inteiro o peso da espera. Do arrastar impiedoso de cada minuto.
Como é que alguém se atrevia a deixá-la à espera? O pai sempre lhe disse que ela era uma pequena princesa. Delicada, de pele clara e olhos grandes, com pestanas longas. Lembrou-se de quando era pequena. Dos folhos dos vestidos, dos sapatos ligeiramente desconfortáveis, mas que lhe pareciam ser os mais bonitos do mundo. E do cabelo apanhado para trás. Sempre bem disciplinado.
O pai seria incapaz de a enganar. Se ele tinha dito que ela era uma pequena princesa, é porque era verdade. E ninguém deve deixar uma princesa à espera. As princesas são esperadas. Desejadas. Veneradas. Por isso, não conseguia entender aquela circunstância.
E ele chegou. Com o cabelo desalinhado e muito claro. Vestia uns jeans gastos e uma camisa branca de algodão. Sentou-se. E esquecia-se sempre de a beijar. Era ela que tinha de fazer o gesto. De se inclinar levemente. E não havia ali nada de imponderado ou de desesperado ou de irracional. Não tinha nada de primeira e última vez. Uma espécie de prolongamento tácito. Onde só subsistia a resiliência dela. A capacidade de aceitação, de resignação que havia nela. Ele havia de a amar. Um dia, ela iria ser imprescindível. E ele iria beijá-la como se fosse a primeira e a última vez. Como se fosse o princípio e o fim.
Ele pediu uma água tónica com muito gelo. E a seguir bebeu tudo de uma só vez. Depois olhou-a. Sem a contemplar. Sem procurar sondá-la. Como se nada nela fosse de adivinhar ou de interpretar. Nem mesmo o silêncio era inacessível.
"Eu não te amo." Foi o que ele disse. Pronunciado sem rede. Com crueza. A olhar para ela de frente.
A negação. A rejeição. O não. Ninguém devia ter que ouvir isto. Mas ela ouviu-o. E de nada valia a pele clara e delicada. E as mãos arranjadas. E o cabelo apanhado. E a blusa de seda e o colar de pérolas que a sufocava. As pérolas oprimiam-na. Tornavam o ar irrespirável. Como se o oxigénio se extinguisse devagar.
Tinha que se libertar. Tinha que respirar. Num movimento imponderado, desesperado e irracional, soltou-se. E as pérolas espalharam-se pelo chão. Para que ela respirasse. Ouviu-as a tocar o chão. Sentiu o colar a desmembrar-se. E o oxigénio a voltar. Muito devagar. Ele levantou-se. E afastou-se ligeiramente da mesa. Num esforço de interpretação. Fez um gesto para apanhar as pérolas. Ela ordenou-lhe que não o fizesse. Que tudo devia ficar como estava. A seguir, e enquanto o olhava em silêncio, começou a soltar o cabelo. Os ganchos e a fita. E o cabelo desfez-se em ondas castanhas, levemente ruivas. O olhar dela era duro. E o dele era limpo, como se a visse pela primeira vez. Como se nunca a tivesse olhado.
E aí ela levantou-se. E colocou-se à frente dele. Muito direita. Com o mesmo olhar firme. E foi ele que fez o gesto. Para a beijar. Mas desta vez ela não se inclinou perante ele. Desta vez ela recuou. Recusou.
Pegou na mala que tinha ficado na cadeira. Olhou-o mais uma vez e foi. A abrir caminho por entre as pérolas espalhadas pelo chão. E ali já não havia aceitação, resignação. Nem resiliência.

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