sábado, 17 de julho de 2010

O milionário sem casa


Havia perdido a noção de casa. Não se recordava ao certo de quando ou como é que tinha acontecido. Mas a sua circunstância era essa. Para todos os efeitos, não tinha casa. Apesar de poder ter várias. E onde quisesse.
Viajava muito. Nunca ficava mais do que três dias no mesmo sítio. A bagagem era mínima. Dois fatos, duas gravatas, algumas camisas. Todas brancas. Por medida. Com as suas iniciais na etiqueta de dentro. E um livro. Sempre o mesmo. A Insustentável Leveza do Ser. No fundo, procurava a sustentabilidade da leveza. Pelo exercício do desprendimento. Por ter vendido todas as casas. Todos os carros. Por se ter desfeito de tudo o que o prendesse. E houve nisso muito de disciplina, de método. De esforço. Especialmente quando doou a colecção de arte do pai. Quando pensou nos anos e nas longas negociações. Mas ele tinha decidido que seria assim. Quase depois de ter perdido os pais. Era ele o único herdeiro. Por isso, as decisões pertenciam-lhe unicamente.
E não tinha filhos. Por ter sido uma evidência, desde muito cedo, que nem mesmo os filhos o poderiam resgatar da inevitabilidade da morte. Da finitude. Da sua finitude.
Nos primeiros tempos, pensou-se que ele tinha endoidecido. Que estava a perder capacidades, não obstante os seus trinta e cinco anos. E depois passaram a olhá-lo como um excêntrico. Ele compreendia que as pessoas precisavam de ordenar os comportamentos. De lhes atribuir uma motivação próxima. E uma etiqueta. Como a das suas camisas brancas. Ele compreendia. Mas não se importava minimamente com o que pensavam das suas decisões. Por mais insólitas que elas fossem.
Mas os negócios prosperavam. E de alguma forma, isso acabava por tranquilizar todos os que se haviam preocupado com a possibilidade de dissolução de uma fortuna tão vasta. E ia viajando. Era o que sabia fazer melhor. Depois de saber fazer dinheiro.
Tinha chegado a Milão ao final da tarde. E tinha sempre a mesma sensação, enquanto era conduzido ao hotel. O de fazer um percurso cinzento, industrial, metálico. Até chegar ao centro de tudo. Das cores, dos brilhos, das montras cénicas e vertiginosas.
E quando chegava, o silêncio com que era recebido era revelador de hábitos, de rituais. Sabiam que ele gostava que houvesse flores frescas no quarto. Que era sempre o mesmo. E que pedia sempre o mesmo para jantar. Que era antecedido por um Kir Royal. Que devia ser preparado com o champanhe que ele escolhera previamente. Jantava sozinho, impecavelmente vestido. E em silêncio. Abominava o desperdício de palavras. Ou as pessoas que falavam demasiado alto. Depois, subia ao quarto e no dia seguinte levantava-se muito cedo, nadava durante meia hora, tomava um pequeno-almoço muito essencial e saía. Para fazer mais dinheiro.
De manhã cedo, a cidade parecia acabada de lavar. Liberta dos excessos da noite. E de dentro do carro, ele gostava de olhar os que a limpavam. Enquanto estava adormecida. Antes que abrisse os olhos. Enquanto se ouvia Song to the Siren, This Mortal Coil.
E por entre os uniformes cinzentos dos que varriam e recolhiam o lixo, surge um corpo frágil, num vestido muito curto e branco. E caminhava distraída. Com um cesto na mão. Tão ausente, que nem reparou numa boca de incêndio, bem no meio do caminho. E fez um rasgão na perna direita. Do cesto, soltaram-se frutas e vegetais e pão fresco.
Mandou parar o carro.
Ela olhava desconsolada para tudo o que estava espalhado no chão. E depois para a perna, que entretanto começara a sangrar. Ele tirou um lenço do bolso de cima do casaco e sem dizer nada, tentou estancar o sangue. Sem perceber porquê, ela não teve receio que um desconhecido lhe limpasse o sangue da perna. Ou que recolhesse as frutas e os vegetais que ela havia escolhido no mercado. E era tão belo que ele não dissesse nada. Que tivesse surgido. Só.
E o silêncio só foi quebrado quando ele disse que a levaria ao hospital, por causa do rasgão na perna. Ela não protestou.
Não houve perguntas. Havia música. It´s not up to you, Bjork. Enquanto atravessavam a cidade metálica que despertava em silêncio. E toda a fragilidade do mundo num rosto a olhar pelos vidros de um carro. Para fora. Ela não se atrevia a olhá-lo. A falar-lhe. Tudo nele aparentava firmeza, resolução. Apesar de se ter inclinado para tratar da ferida de uma desconhecida. Apesar da humildade que isso pressupôs.
Quando o carro parou, ele fez o gesto para sair. Ela colocou-lhe a mão no braço. Para o impedir. Em silêncio. E silenciosamente, ele desviou-lhe do rosto uma das ondas do cabelo muito livre, levemente indisciplinado, preso de forma descuidada com pequenos ganchos que eram borboletas em repouso. Depois abriu a porta, para a ajudar a sair.
Lá dentro, esperou que a ferida fosse tratada. E quando a viu ao fundo do corredor, o rosto dela era de um contentamento de quase infância. E o dele era de comoção. Pela dádiva, pelo que havia de gratuito, de graça na fragilidade do corpo que se aproximava devagar.
Ela quis agradecer. E disse que já estava tudo bem. Que iria para casa. E que já podia ir sozinha. E sem pensar muito, ele pediu-lhe para almoçar. Então, ela ficou em silêncio. E depois perguntou pelo cesto. Porque seria ela a fazer comida. Para que almoçassem. Só era preciso comprar pão fresco. Tudo o resto poderia ser aproveitado. E ele não protestou. Aceitou.
A casa dela ficava no centro da cidade. Perto das Galerias. Vivia por cima de uma loja de discos de vinil. Ele ajudou-a a subir as escadas. O elevador nunca funcionava.
E a casa dela era como ela. De olhar prolongadamente. Plena de detalhes. Torres de livros. Quadros no chão, encostados às paredes. Pequenos copos de água com flores. Peónias. Rosas japonesas. Narcisos. Hibiscos. Eram de muitas cores. Misturadas numa harmonia com sentido. E uma sala quase vazia, cheia de espelhos diferentes uns dos outros. Um tapete no centro. Uma jarra com rosas numa mesa junto à janela.
Ela pôs música. Cocoon, Bjork. E disse que era bailarina. Aquela era a sala dos espelhos e da música. Era a sala onde ensaiava a leveza do corpo. Depois, deixou-o. Disse que ia começar a fazer comida. Ele ficou só. Com a música e com os espelhos. E tentou imaginar.
Procurou-a. Tentou adivinhar onde seria a cozinha. Em pontos inesperados, havia sapatos. Muito bonitos. Em cima de livros. Nas estantes. No topo de revistas empilhadas. Muitos sapatos. Altíssimos. Achou estranho, mas acabava por fazer sentido. Eram tão bonitos, que mereciam ser contemplados.
Ouvia os gestos dela. Pressentia-se uma serenidade primordial. Nos movimentos. E à porta parou. Ela tinha apertado o cabelo. E estava descalça. De costas. A picar ervas. Um cheiro difuso a tomilho. A cebolinho. A salva. Em cima da mesa havia courgettes partidas e cenouras e aipo. Queijo parmesão para ser ralado. E vinho tinto. Em dois copos. Olhou para o aparador. Mais livros. Sobre comida. Chávenas de chá muito frágeis. Fotografias. Castiçais sem velas, de prata.
Ela estendeu-lhe um dos copos. Com um sorriso. E pediu-lhe para ir para a sala. Gostava de cozinhar sozinha. Para que os gestos fossem ponderados. Era todo um ritual. O de transformar. O de recriar.
Ele obedeceu. Pela casa, a música que soava a início. Deu-se conta que não sabia o nome dela. E que ela não tinha perguntado pelo seu. Eram os dois sem nome. Sem história. Eram os dois um começo limpo. Bebeu o vinho demoradamente. Enquanto olhava as lombadas dos livros em torres. O aroma das flores misturava-se devagar com o cheiro a comida. Com o cheiro a casa. A casa dela cheirava a casa.
Ela veio buscá-lo. Os cabelos estavam livres outra vez. Tinha mudado de vestido. E já não estava descalça. Nos pés, uns dos sapatos que ele tinha visto. Era um cerimonial. E levou-o pela mão.
A mesa estava posta cá fora. Num pequeno terraço invadido de verde. Uma mesa branca. Com vista para a vida que acontecia em baixo. Na cidade. Mas isso agora era um lugar muito longe.
Ela tinha feito um risotto. Muito aromático. Sem que o parmesão contaminasse a untuosidade suave dos grãos de arroz. Nada perturbava. Tudo era harmonia. E uma salada. Com sabores que ele não conseguia decifrar inteiramente. E à mesa houve silêncio. Abençoado pela música que soava a início.
Quando terminou, levantou-se. E baixou-se. Olhou comovido para a perna ferida. E depois para o rosto. Voltou a afastar as ondas indisciplinadas do rosto limpo. E beijou-a. Uma dádiva. Depois olhou-a. E perguntou-lhe o nome.
Isabella.
E soube que ela era a sua casa. Onde quer que ela estivesse, seria aí a sua casa.

1 comentário:

  1. Que bonito... e tão bem escrito!!! Parece o início de um bom romance...

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