segunda-feira, 26 de julho de 2010

Fragilidade


Há algum tempo que estavam a andar de carro. Em silêncio. Quase sempre em linha recta. Uma linha monótona que às vezes parecia apagar-se à frente dos olhos. E cada um com os seus pensamentos. Com as pessoas e os momentos e os temores e as expectativas de cada um. Pequenas parcelas que não são partilháveis. A que não se dá voz.
Estavam juntos há tempo suficiente para não olharem um para o outro. Para não atentarem nos gestos, nas variações da voz e do rosto. No entanto, estavam ali. A avançar com uma direcção definida. Para mais um dos sítios em que deviam aparecer. Obedientes aos códigos. Ele devia usar um fato preto, uma gravata discreta. E ela um vestido de cocktail que fosse suficientemente afirmativo para ser um vestido de noite. E as jóias deveriam ser escassas. Mas igualmente afirmativas. Escolheu uns brincos compridos de diamantes e um anel. Isso bastava. Para não ofuscar o vestido e os sapatos. Para as jóias não serem mais do que ela. Mas os olhos estavam carregados. A maquilhagem não tinha nada de submissão. Tinha acabado de se arranjar numa casa de banho de uma estação de serviço, a meio do caminho. Não gostava muito da ideia de passar horas devotada a compor a personagem. Havia sempre alguma coisa que era de última hora. Para retirar importância e gravidade ao que iria acontecer. Mas sabia que o sorriso nunca devia esmorecer. E que não podia ser demasiado evidente ou fácil.
Há muito que se habituara a ser exibida. Por ser uma conquista. Um dos feitos na vida dele. E à entrada, tudo seria escrutinado. Nela. Implacavelmente escrutinado. Seria verificada. O cabelo, a pele, o corpo dentro do vestido, as jóias, os sapatos. Tudo sem misericórdia.
E depois seriam recebidos por pessoas sorridentes e por outras que se lhes associavam, em busca de cumplicidade. Até que ele começava a afastar-se gradualmente. Enquanto ela era cercada por mulheres de sorriso persistente, consolidado, ensaiado. Conseguia aguentar durante alguns minutos. Já tinha aprendido a calcular a parcela de tempo em que atenciosamente respondia a perguntas ou falava de coisas que não eram significativas. No entanto, ela não se achava especial ou melhor. Não era isso. Acontecia que ela não estava ali. Estava sempre no momento de liberdade à frente. Quando pudesse vir cá fora, para poder fumar em silêncio. Ou quando se despedisse com um sorriso. Ou quando despisse o vestido e limpasse a pintura do rosto. Era aí que ela estava. Era aí que ela se via enquanto falava pausada e educadamente. Em frente ao espelho.
Assim que era conveniente, ausentava-se. Dez minutos de exercício de liberdade. Mesmo tendo a noção de que ali onde se movia, não era correcto fumar numa festa. Uma mulher, entenda-se. Mas contava com uma relativa complacência. Era apenas um pequeno defeito, no meio de tantas virtudes, pensavam.
E então, contemplava o silêncio. A ideia de silêncio à frente dos olhos. Apesar dos sons difusos de fundo. O tilintar dos copos, a música, um ou outro riso mais solto. Mas ali havia uma certa ideia de silêncio. E isso pertencia-lhe.
A música fazia-a deslocar-se. Abstrair-se de si. Não havia história. Havia aquele momento. Repetido desde há muito. Feito de uma solidão muito fugaz, roubada às conversas com os outros. Que existiam de uma maneira tão segura. Nada de estilhaços. Nem um só. Naqueles rostos que via de fora, pela janela, enquanto fumava lentamente.
E dentro dela, estava tudo estilhaçado. Mas tinha feito uma escolha. Não sabia que a seguir seria assim. Que ficaria quebrada por dentro. E cada vez mais bonita por fora. O que era pior do que deixar-se ir. E dar sinais dos estilhaços. Tinha feito uma escolha. Tinha que viver com isso. Mesmo que estivesse partida e não conseguisse juntar os pedaços. Era o preço. Que teria que pagar.
Um criado chegou junto dela com uma bandeja. Champanhe dentro de cristal. A liquidez sustentada por uma fragilidade de cristal. Não queria beber.
O criado deu a volta, para regressar à sala. E tropeçou. E no chão, pequenos cristais. Estilhaços. E o alvoroço no rosto do homem que tentava rápido limpá-los. E os olhares que vinham de dentro. De lá dos vidros das janelas.
O marido surgiu. Quando ela se preparava para ajudar. Para tentar juntar os cristais partidos. A mão dele no braço demoveu-a. Olhou para trás. E deixou-se levar para dentro. Para tudo o que viria depois. Em direcção aos dias feitos de passos e de gestos já consolidados. Era isso que ela conhecia. E não valia de nada juntar os estilhaços atrás de si. Era irreversível. Nunca seria inteira. Tinha escolhido não ser inteira.

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