terça-feira, 22 de junho de 2010

Uma substância absolutamente infinita


Deus é uma substância absolutamente infinita. Constituída por infinitos atributos. Cada um dos quais, infinito no seu género.
Absolutamente obcecado. Imerso em livros. Torres de livros. Já não chegavam as estantes, os armários, as mesas. Por todo o lado. Livros com títulos enigmáticos e incompreensíveis para os outros. Que só para ele eram evidentes.
Havia procurado o Deus de Espinosa no silêncio das igrejas. No corpo das mulheres. Na beleza. Na exaltação. E sempre nos livros. Sublinhados, assinalados, trabalhados.
Observava uma disciplina rigorosa, auto-imposta. Levantava-se cedo, tomava um pequeno-almoço frugal. Café e torradas com compota. Depois, pegava num dos seus lápis que não feriam os livros e começava tudo outra vez.
A empregada vinha a meio da manhã. Sabia que não devia perturbá-lo. Nem sequer para perguntar o que queria para o almoço. Devia fazer o que tinha a fazer. Em silêncio.
A casa era grande. Demasiado grande. Para um homem só. Não tinha casado. Não tinha filhos. E não trazia mulheres a sua casa. Era ele que as devia procurar. E nunca o contrário.
Os pais haviam morrido há muito tempo. Ele estava na faculdade. Um acidente. Havia dinheiro. Muito dinheiro. Ou o suficiente para ele nunca precisar de trabalhar. Ou o suficiente para poder ler até ao fim dos seus dias.
E viajava muito. Sempre pelo mesmo motivo. Sempre pela mesma obsessão. Deus é uma substância absolutamente infinita... uma substância absolutamente infinita. Tudo estava organizado para que nunca precisassse de se preocupar com pormenores terrenos, com tudo o que fosse pequeno e prático. O velho advogado da família aceitava com complacência as suas excentricidades e dedicava-se-lhe a tempo inteiro. Como um fiel servidor.
Sentia-se irmão de todos os que tinham a mesma busca. Mas nunca quis produzir nada. Nunca quis seguir um percurso. Apesar das insistências dos professores, dos convites das universidades. Aquela devia ser uma procura solitária e absolutamente livre. Nenhuma outra ideia o seduzia, senão a ideia da busca em si. Talvez por ter tido a noção, desde o início, que seria uma busca infinita. E completamente inútil. Absolutamente destituída de utilidade. Como tudo o que era belo.
O tempo ia-lhe marcando o rosto. E o lápis parecia um prolongamento do corpo. Tinha deixado de viajar, de sair. Os livros iam-se amontoando. Cada vez mais. A empregada já havia desistido há muito de disciplinar aquele caos. De devolver ordem fosse ao que fosse. Preparava as refeições e saía. Em silêncio.
Um dia, quando entrou, olhou para o tabuleiro do jantar. Intocado. Devagar e silenciosamente, foi percorrendo os corredores da casa, até à biblioteca, onde ele costumava adormecer. E estava lá. Ele estava lá. Caído no chão. Havia um papel manchado de tinta, ao lado do corpo sem sopro. "Deus está em..." Uma formulação inacabada.
O Deus de Espinosa estava nele. E no desejo que o movia. Que era a sua essência.


Para o Vasco.

sábado, 19 de junho de 2010

Pela água


Os passos rápidos e desorientados ecoavam no empedrado. A casa ia ficando cada vez mais distante. Ouvia-se a música ao longe. Bryan Ferry. Slave to Love. Uma festa numa casa decadente. Uma enorme casa dos anos 50, com janelas que quase nunca eram abertas. E cortinados pesados e desbotados. E pratas que raramente eram usadas. Limpas uma vez por ano pelas mãos diligentes das duas únicas criadas que haviam ficado.
Tirou os sapatos. E sentiu a relva molhada nos pés. Como uma espécie de aparição. De revelação. Os pés dela não estavam habituados a tocar, a sentir o chão. Continuou a correr. Deixou os sapatos para trás.
O longo vestido verde atrapalhava-a e ia sendo rasgado nos arbustos que há muito não eram disciplinados. Já não havia jardineiro. A dissolução de um modo de vida também estava ali, nos jardins da casa.
Ela tinha-os visto. Quando foi ao andar de cima, retocar a maquilhagem. As mãos dele percorriam-na com urgência. As mãos dele estavam a despi-la. E ela viu-os. E havia um espelho à sua frente. Para que ela se visse na sua perda. Lentamente, desceu os degraus. Um a um. Contou-os. Cinquenta e oito degraus. Com as mãos a tentar encontrar firmeza no corrimão de nogueira. O chão, ali, era uma longa passadeira. Confortável, previsível, sem rugosidades.
No salão principal, tudo estava igual. Mas ela já não era a mesma. Passou a correr pela copa. Uma mulher vestida de verde. Aqueles criados não a conheciam. Tinham sido contratados para aquela noite. Por isso, passou sem que ninguém a impedisse ou lhe perguntasse se estava tudo bem. Também ali tudo estava igual.
Agora, os pés estavam magoados. E o vestido, irremediável. Mas continuava a ser um lindo vestido verde, a escorrer como água, no seu corpo muito magro. Agora, não havia nada a fazer. Não podia voltar para a festa. Descalça. Com o vestido rasgado, a arrastar pelo chão.
Olhou mais uma vez para a casa. Continuava a ouvir a música. E os risos ponderados, soltos na circunstância certa. Por uma das janelas do andar de cima, devia ver-se os dois corpos juntos. Muito juntos.
Continuou. Agora sem correr. Os arranhões nos pés e nas pernas ardiam. Mas aquela dor era boa. Se ao menos conseguisse concentrar-se nos pés doridos, no vestido rasgado, no cabelo desfeito. Ia casar amanhã. Iam casar amanhã. Já não.
Pelo meio dos hibiscos, foi adivinhando a água. Há muito tempo que não vinha ao lago. As folhas dos hibiscos colavam-se à pele. Ela gostava tanto daquelas flores. Que se recolhiam quando o sol desaparecia. À espera do dia seguinte.
Lembrava-se de um barco. O avô levava-a muitas vezes ali. Recordava-se de se sentar muito direita, para que não balançasse e da voz do avô. E dos seus silêncios, enquanto iam pela água. Ela queria ir pela água. Outra vez.
O barco ainda estava ali. Colocou um pé, depois o outro. Ainda lá estavam os remos. Gostava do som que faziam, quando entravam na água. Foi avançando. Muito devagar. Agora estava bem no meio do lago. E os pés estavam molhados. Depois o vestido.
Não houve agitação. Nem pânico. A água ia tomando conta de tudo. O vestido soltou-se do corpo. Um longo vestido verde, a ir pela água.

A Insolência da Beleza


No Verão, junto ao mar, a morte é mentira. Os corpos celebram-se. São revelados.
Sentou-se na esplanada e pediu um gin tónico. Bebia sempre o mesmo. Todos os dias. Enquanto olhava o mar. Havia um entendimento tácito entre ele e quem o servia. Queria pagar logo, para ficar a olhar o mar. Sem perturbações e trocos e recibos. Muito de vez em quando, pedia uma torrada. Nunca reparava nas pessoas. Sabia que elas estavam lá. Que estavam invariavelmente vestidas de cores claras e que cheiravam a bronzeador.
Mas surgiu um corpo. Bem ali no meio. E um rosto. Era muito morena e terrivelmente jovem. Tinha ar de quem nunca tinha sofrido. De quem nunca tinha ouvido um não. Sem história. Um corpo e um rosto à espera de serem escritos. Os cabelos eram muito longos. Claros, mas àquela luz, indefiníveis. Via-se que era gostada. Que conhecia muitas pessoas ou que vinha ali com frequência. Mexia-se devagar, mas sem complexidade. Os gestos e os sorrisos não possuíam ainda densidade. De vez em quando, calava-se e olhava fixamente para o mesmo sítio. Havia ali uma possibilidade de poesia. Naquele silêncio. Na ausência de expressão.
Há um rapaz que se aproxima. Fala-lhe. Via-se à distância que era ela que tinha o poder. Não o têm sempre, as mulheres? Nada daquilo que ele lhe dizia parecia interessar-lhe. E do nada, depois de fixar o olhar no empregado que lhe trouxe uma cola com limão, virou-se para o rapaz e disse bem alto: "Tu és feio."
Feio. Uma palavra quase infantil. Crua. Despojada de elaborações. O rapaz olhou para o chão. E depois caminhou em direcção ao mar. Até ser só um pontinho escuro, lá longe.
Ela sentou-se numa das espreguiçadeiras, colocou os óculos escuros e foi bebendo calmamente a cola. Ele terminou o gin tónico, fechou o livro na página que não tinha lido. Levantou-se.
Com sorte, daqui a algum tempo, talvez houvesse poesia. Por agora, só havia a palavra "feio". Atirada com insolência. Pela beleza. E veio embora.