sábado, 19 de junho de 2010

A Insolência da Beleza


No Verão, junto ao mar, a morte é mentira. Os corpos celebram-se. São revelados.
Sentou-se na esplanada e pediu um gin tónico. Bebia sempre o mesmo. Todos os dias. Enquanto olhava o mar. Havia um entendimento tácito entre ele e quem o servia. Queria pagar logo, para ficar a olhar o mar. Sem perturbações e trocos e recibos. Muito de vez em quando, pedia uma torrada. Nunca reparava nas pessoas. Sabia que elas estavam lá. Que estavam invariavelmente vestidas de cores claras e que cheiravam a bronzeador.
Mas surgiu um corpo. Bem ali no meio. E um rosto. Era muito morena e terrivelmente jovem. Tinha ar de quem nunca tinha sofrido. De quem nunca tinha ouvido um não. Sem história. Um corpo e um rosto à espera de serem escritos. Os cabelos eram muito longos. Claros, mas àquela luz, indefiníveis. Via-se que era gostada. Que conhecia muitas pessoas ou que vinha ali com frequência. Mexia-se devagar, mas sem complexidade. Os gestos e os sorrisos não possuíam ainda densidade. De vez em quando, calava-se e olhava fixamente para o mesmo sítio. Havia ali uma possibilidade de poesia. Naquele silêncio. Na ausência de expressão.
Há um rapaz que se aproxima. Fala-lhe. Via-se à distância que era ela que tinha o poder. Não o têm sempre, as mulheres? Nada daquilo que ele lhe dizia parecia interessar-lhe. E do nada, depois de fixar o olhar no empregado que lhe trouxe uma cola com limão, virou-se para o rapaz e disse bem alto: "Tu és feio."
Feio. Uma palavra quase infantil. Crua. Despojada de elaborações. O rapaz olhou para o chão. E depois caminhou em direcção ao mar. Até ser só um pontinho escuro, lá longe.
Ela sentou-se numa das espreguiçadeiras, colocou os óculos escuros e foi bebendo calmamente a cola. Ele terminou o gin tónico, fechou o livro na página que não tinha lido. Levantou-se.
Com sorte, daqui a algum tempo, talvez houvesse poesia. Por agora, só havia a palavra "feio". Atirada com insolência. Pela beleza. E veio embora.

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