sábado, 19 de junho de 2010

Pela água


Os passos rápidos e desorientados ecoavam no empedrado. A casa ia ficando cada vez mais distante. Ouvia-se a música ao longe. Bryan Ferry. Slave to Love. Uma festa numa casa decadente. Uma enorme casa dos anos 50, com janelas que quase nunca eram abertas. E cortinados pesados e desbotados. E pratas que raramente eram usadas. Limpas uma vez por ano pelas mãos diligentes das duas únicas criadas que haviam ficado.
Tirou os sapatos. E sentiu a relva molhada nos pés. Como uma espécie de aparição. De revelação. Os pés dela não estavam habituados a tocar, a sentir o chão. Continuou a correr. Deixou os sapatos para trás.
O longo vestido verde atrapalhava-a e ia sendo rasgado nos arbustos que há muito não eram disciplinados. Já não havia jardineiro. A dissolução de um modo de vida também estava ali, nos jardins da casa.
Ela tinha-os visto. Quando foi ao andar de cima, retocar a maquilhagem. As mãos dele percorriam-na com urgência. As mãos dele estavam a despi-la. E ela viu-os. E havia um espelho à sua frente. Para que ela se visse na sua perda. Lentamente, desceu os degraus. Um a um. Contou-os. Cinquenta e oito degraus. Com as mãos a tentar encontrar firmeza no corrimão de nogueira. O chão, ali, era uma longa passadeira. Confortável, previsível, sem rugosidades.
No salão principal, tudo estava igual. Mas ela já não era a mesma. Passou a correr pela copa. Uma mulher vestida de verde. Aqueles criados não a conheciam. Tinham sido contratados para aquela noite. Por isso, passou sem que ninguém a impedisse ou lhe perguntasse se estava tudo bem. Também ali tudo estava igual.
Agora, os pés estavam magoados. E o vestido, irremediável. Mas continuava a ser um lindo vestido verde, a escorrer como água, no seu corpo muito magro. Agora, não havia nada a fazer. Não podia voltar para a festa. Descalça. Com o vestido rasgado, a arrastar pelo chão.
Olhou mais uma vez para a casa. Continuava a ouvir a música. E os risos ponderados, soltos na circunstância certa. Por uma das janelas do andar de cima, devia ver-se os dois corpos juntos. Muito juntos.
Continuou. Agora sem correr. Os arranhões nos pés e nas pernas ardiam. Mas aquela dor era boa. Se ao menos conseguisse concentrar-se nos pés doridos, no vestido rasgado, no cabelo desfeito. Ia casar amanhã. Iam casar amanhã. Já não.
Pelo meio dos hibiscos, foi adivinhando a água. Há muito tempo que não vinha ao lago. As folhas dos hibiscos colavam-se à pele. Ela gostava tanto daquelas flores. Que se recolhiam quando o sol desaparecia. À espera do dia seguinte.
Lembrava-se de um barco. O avô levava-a muitas vezes ali. Recordava-se de se sentar muito direita, para que não balançasse e da voz do avô. E dos seus silêncios, enquanto iam pela água. Ela queria ir pela água. Outra vez.
O barco ainda estava ali. Colocou um pé, depois o outro. Ainda lá estavam os remos. Gostava do som que faziam, quando entravam na água. Foi avançando. Muito devagar. Agora estava bem no meio do lago. E os pés estavam molhados. Depois o vestido.
Não houve agitação. Nem pânico. A água ia tomando conta de tudo. O vestido soltou-se do corpo. Um longo vestido verde, a ir pela água.

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