segunda-feira, 5 de julho de 2010

A condessa pobre


As janelas da casa estavam sempre abertas. Mesmo no Inverno. Mesmo nos dias em que chovia muito e fazia frio. Talvez já nem pudessem ser fechadas. De fora, pressentia-se a decadência do interior. Tudo havia sido vendido, espoliado ou despojado da sua existência imemorial. As grandes sebes de loureiro já não eram metáforas de disciplina e de simetria. Espalhavam-se, selvagens, pelos jardins abandonados pelas mãos dos homens que as cuidavam. As árvores muito velhas iam ganhando estranhas formas que afastavam as crianças e provocavam nos adultos a nostalgia do esplendor anterior à dissolução, à queda.

Por vezes, via-se uma mulher. Por entre os cortinados desbotados e cheios de pó. Surgia momentaneamente à janela. Depois desaparecia. Como uma aparição fugaz. Mas ela era real. Havia muitas histórias sobre ela. E muitas versões das mesmas histórias. Mas nenhuma era verdade. Os olhos dela eram de um azul baço e os cabelos claros, pouco cuidados. Nas poucas ocasiões em que saía à rua, usava uma espécie de turbante na cabeça, ou um lenço, de cores vivas. Pintava os lábios de vermelho. E usava uns sapatos verdes muito altos e ligeiramente desbotados.

Sabia-se que era pobre. E que era uma condessa. Uma condessa pobre, que se alimentava de comida enlatada. Comprada no supermercado construído numa parte da sua antiga propriedade. Vendida, para garantir dinheiro para mais uns anos de vida. Era uma figura excêntrica. Que usava peças de roupa sobrepostas. Vestidos e casacos de cores fortes. Tudo muito misturado. Tudo muito confuso. Como se quisesse usar todas as roupas e todas as cores de uma só vez. E o cabelo oculto. Com lenços berrantes.

Tinha sido rejeitada. Há muitos anos atrás. No dia do casamento. Ele não apareceu. E ela ficou à espera. À espera. Com o vestido escorrido. Primeiro, foi consolada. Pelas mulheres. Os homens guardaram distância. Mas a pouco e pouco, todos foram embora. E ficou ela. E as mesas da festa. Os copos de cristal. Os talheres de prata. Ordenou que nada fosse limpo. Ou arrumado. No jardim, as heras e a vegetação começaram a apoderar-se de tudo. Dos copos cheios de vinho. Dos talheres. Das loiças. A Natureza fez o seu caminho na festa eternamente cristalizada naquele momento em que ela foi deixada à espera.

Depois de ter dispensado os criados, subiu sozinha e lentamente a longa escadaria. Até ao quarto. Olhou o vestido. As pérolas. E o anel da promessa. Manteve-o no dedo. Era um sinal de promessa por cumprir. Usá-lo-ia sempre. Para não se esquecer que tinha sido recusada.

Durante muito tempo, concentrou-se em querer desaparecer. Nunca era vista cá fora. Deixou de ir às festas onde sempre tinha sido admirada e cortejada. E, lentamente, deixou de existir. De ser convidada. De ser lembrada. Talvez ocasionalmente alguém recordasse o escândalo da festa interrompida. Numa qualquer conversa circunstancial, não muito prolongada.

E um dia tentou o regresso à normalidade. Tentou vestir-se. Pintar-se. E pentear-se. Os gestos eram pesados. Tudo lhe pareceu pesado e destituído de sentido. E já não sabia escolher a roupa. Ela, que sempre tinha sido reconhecida por isso. Por saber exactamente o que vestir. Que brilhava nos vestidos mais certos, em cima dos sapatos mais elegantes. E ninguém tinha umas pernas tão perfeitas.

Depois de sete anos de reclusão voluntária, saiu à rua. E suportou os olhares e os murmúrios e a curiosidade alimentada por mil histórias. Subiu dignamente a rua principal da vila. Apercebeu-se das vozes e dos olhares atrás de si. E suportou.

O cabelo estava sem corte. Queria ir arranjá-lo. Não sabia muito bem onde ir, por isso, entrou no primeiro salão que viu. E quando entrou, a agitação que tinha ouvido de fora, cessou. E os olhares convergiram nela. Naquela figura estranha, vestida de lilás, com uns sapatos verdes e desbotados. Olhou-se num dos espelhos. Estava excessivamente maquilhada. O espelho do quarto não lhe tinha devolvido a verdade. Diz-se que os nossos espelhos são benevolentes. O dela mentiu-lhe.

Grotesca. Sentia-se grotesca. E, antes de dizer fosse o que fosse, saiu para a rua. Agora, já não conseguiria descer a rua com dignidade. Sentia nos olhares a confirmação do que tinha visto no reflexo do espelho. Baixou os olhos. Tentou chegar a casa. E fechar as portas. Mas abrir as janelas. Para sentir o sufoco do calor no Verão e o frio seco do Inverno e a doçura dos cheiros na Primavera e a nostalgia do Outono.

Desse dia em diante, só saía ao final do dia, quando a luz começava a desaparecer. Pouco antes da hora de fecho do supermercado. Para comprar latas de comida. Para si e para o gato. Que não tinha partido. Que não a abandonara. Depois, voltava a casa. Não havia luz. Por isso, vagueava durante a noite pelos corredores e pelas salas vazias, com uma vela acesa. Passava pelas janelas. Que emolduravam a vida cá fora. Tudo aquilo que tinha continuado a existir. Apesar da sua tragédia.

E ninguém deu conta da sua morte. Só o gato, num miar contínuo e pungente, quase humano. Junto ao corpo não celebrado da condessa pobre.






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