quinta-feira, 1 de julho de 2010

Angústia



And then the terrible thing happened. Não conseguia escrever. Tudo parecia já ter sido dito. Por ele ou pelos outros. A angústia de não ter uma voz. De não haver nada a dizer. E a página limpa, todos os dias. Apesar de se ter disciplinado. Apesar de acordar cedo, todos os dias à mesma hora. Apesar de ter deixado de beber, para que nada interferisse. Para que nada estivesse entre si e as palavras. Que nunca mais chegavam. Que nunca chegavam. Que eram sempre pequenas e previsíveis e fragmentárias. E não havia nem a libertação da tentativa. Nem esse consolo. Sentava-se à secretária. E estava tudo pronto. Deixava tudo preparado no dia anterior. As folhas ou o caderno e a caneta. A caneta era sempre a mesma. Herdada do pai. Só tinha que se assegurar que tinha cargas suficientes. Mas nos últimos tempos, a tinta parecia nunca chegar ao fim.
Quando tudo se tornava demasiado insuportável, vinha cá fora. Para olhar as pessoas. Sentava-se num café. Num que tivesse uma janela aberta para a rua. Que desse para ver as pessoas e imaginar as histórias de cada uma delas. Num desses dias, numa das mesas estava uma rapariga. Parecia muito jovem. E muito frágil. E estava a chorar. Silenciosamente. Enquanto olhava para o que pareciam ser bilhetes. De comboio ou teatro. Não dava para perceber à distância. Então, deu conta que estava a ser observada.
Levantou-se. E ao contrário do expectável, dirigiu-se à mesa onde ele estava sentado. Estava toda vestida de preto e era muito magra. Os olhos demasiado azuis tinham um traço negro, que entretanto se tinha espalhado e escorria pela cara. Perguntou se podia sentar-se. E depois disse que se chamava Alice e que não queria estar sozinha. Tinha vindo de muito longe. Para um concerto. E o namorado tinha deixado de ser namorado. E tinha dois bilhetes.
Ele ouviu. Pareceu-lhe que ela queria ser ouvida. Que queria dizer alto aquilo que sentia. Verbalizar a rejeição. Talvez. Mas não deixava de ser comovente. Ver alguém a chorar. Num café movimentado, no centro da cidade. Depois parou. Deixou de chorar. E foi lavar a cara. Ele continuou sentado, a olhar lá para fora, desconcentrado agora. Via as pessoas a passar em frente à janela. Mas já não pensava nas histórias.
Quando ela voltou, a cara já não estava tingida de preto. E o traço à volta dos olhos estava perfeito, bem delineado. Lembra-se de ter sentido um aroma leve. Cítrico. A tangerina, talvez. Manteve-se em pé e disse que queria oferecer-lhe um dos bilhetes. Mas que não era para irem juntos. Ela queria ir sozinha. Queria estar só. No meio de muitas pessoas. Ele achou que devia aceitar. E agradecer. Depois, despediram-se. E ele pensou que nunca mais a veria.
Ficou a olhar durante muito tempo para o bilhete. Massive Attack. Não conhecia aquela música. E escolheu ir. Chamou um táxi. Estava quase a acontecer. Cá fora, reparou nos homens de gabardinas pretas. Impassíveis. Em torno da arena. Como personagens de um filme de ficção científica. Sem expressão. E era muito escuro, aquele lugar. E, previsivelmente, as pessoas estavam em grupos, para se sentirem mais seguras, menos sós. Ele avançou até ficar próximo do palco. Talvez pudesse perceber melhor o significado de ter escolhido estar ali. Bem no meio de todos aqueles corpos. E da solidão que cada um deles carregava consigo.
E começou. Uma voz sussurrada. E um segundo de silêncio, antes da explosão da música. E dos corpos. Que se moviam de olhos fechados. Já distantes da noção de grupo. Sós. Muito sós. Inevitavelmente sós.
E viu-a. Muito quieta. No meio dos outros corpos. Com os olhos abertos. E a chorar. Outra vez. Há um rapaz que se aproxima. Que se coloca à frente dela. E a olha durante uns segundos. Depois tirou a t-shirt. E, devagar, secou-lhe as lágrimas. Enquanto a música crescia. Enquanto todos os outros corpos permaneciam indizivelmente sós.
Sentou-se à secretária. Olhou as folhas, a caneta. E fumou. Absolutamente concentrado no queimar lento do cigarro. E durante a noite escreveu como se a morte estivesse perto. E precisasse de dizer tudo. A raiva, o amor, a fúria, os homens, as mulheres, as árvores e as pedras. E os corpos.
Assim. Até gastar as palavras. Até gastar a tinta.

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