Absolutamente esmagado pelas palavras dos outros. Que se dedicava a dissecar. Nas aulas, em conferências, nas suas dissertações. Esforços sempre pequenos e vãos de se elevar acima da base.
Nunca seria nada. Nunca iria conseguir criar. Criar mesmo. A partir do nada. Para tantos, era tão fácil. Parecia tão fácil. Por isso, o seu ofício era o de escrever sobre as palavras dos outros. Servia apenas aquilo que outros já tinham dito. E tinha tentado. Muitas vezes. Encerrado no gabinete que lhe tinha sido atribuído. Tentava escrever. Dizer algo que nunca tivesse sido dito. Mas por cima de si, a olhar para o que estava na folha, estavam os outros todos. A sorrir com complacência. Era assim que ele os imaginava. A sorrir. Nem sequer um riso franco e limpo. Apenas um esgar ligeiro. E benevolente.
E deixava de haver possibilidade de grandeza. Ele e as suas palavras. Tudo tão pequeno. Ele e as palavras. Juntos e amachucados no cesto dos papéis.
E havia um percurso a fazer. Que ainda nem estava na metade. Isso também o esmagava. Começou logo a dar aulas, primeiro como assistente. Mas tinha a noção que isso não tinha acontecido por ser particularmente brilhante. Ou marcante. Tinha acontecido. Mas depois seguiu-se a pressão de dar provas. De ser merecedor. Nesses primeiros tempos, nem se dava conta. Tinha que se concentrar no trabalho. No método. Na disciplina. Nem se dava conta que o tempo ia escorrendo. E que ainda não tinha dito nada que nunca tivesse sido formulado. Descuidou-se com o passar do tempo. Foi leviano.
E agora tinha que dar mais provas. Por causa do tal percurso. E as aulas. E não conseguir encarar a insolência do olhar limpo dos alunos. Os olhos dele iam sempre para as janelas da sala. Para a abstracção do que existia lá fora.
O suplício durava noventa minutos. Que ele contava metodicamente. Era conhecido por ser pontual. Na entrada e na saída. Não havia rasgos, nem intervenções espontâneas, nem divagações depois das aulas ou nos corredores.
E estava para ali. Sentado a uma secretária. Como os outros todos. E ninguém iria dar por ele.
Numa das tardes longas em que se confrontava, angustiado, com a folha vazia, ouviu o som de algo a ser passado por debaixo da porta. Levantou-se. Eram folhas dobradas ao meio. Abriu-as. E leu tudo. E a tarde deixou de se arrastar. Quando terminou, olhou lá para fora e os candeeiros dos jardins já tinham luz.
Havia grandeza naquelas palavras. Por nunca terem existido antes. Algo que estava a nascer. E ele tinha o privilégio de assistir a tudo desde o início. Raiva. Muita raiva. Por não ter sido ele a escrever aquele princípio.
Passaram os dias. E, por fim, a época de exames. E não dar aulas. E um dia. Ao final da tarde. Quando se preparava para arrumar as coisas. Alguém bate à porta. Foi abrir. Uma das suas alunas do primeiro ano. Ainda de mochila. Ainda de sapatilhas. Ainda em construção.
Perguntou se podia falar. Ele tentou disfarçar a impaciência. No dia seguinte era mais conveniente, disse. E de manhã. Ela interrompeu-o. Tinha sido ela a deixar as folhas debaixo da porta. Queria saber a opinião dele. Não tinha dado a ler a mais ninguém. E precisava de saber o que era aquilo que tinha escrito.
Ele olhou-a sem reacção. Mas dentro, havia raiva. Era indecente. Ela ser bonita e inteligente. Era indecente ela ter uma voz. E ele não. Como é que ela se atrevia a crescer? A ser maior. Como é que ela se atrevia?
E então, ciente da crueldade do que iria pronunciar, disse-lhe que nada daquilo que ela tinha escrito era suficientemente interessante ou digno de ser lido. E que, se não houvesse mais nada, tinha mesmo que ir embora.
Ela fincou os dedos nas alças da mochila. A olhar para o chão. Depois levantou os olhos. Que estavam brilhantes. Por estarem prestes a encher-se de lágrimas. Mas conteve-se. Respirou pesada e prolongadamente. E disse que o tinha escolhido. E que ele não tinha sido digno. Que tinha sido pequeno.
E foi embora. Ele ficou à porta do gabinete. A olhar para o fundo do corredor longo e silencioso. Absolutamente confirmado na sua inferioridade.